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  • Carvalho Pereira Fortini

A novela do leilão da CEDAE-RJ

Atualizado: 3 de mai. de 2021


Em sessão tumultuada, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovou projeto de decreto de autoria do Deputado André Ceciliano, para então suspender o leilão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE). A votação terminou com 34 (trinta e quatro) votos a favor e 21 (vinte e um) contra, para além de 2 (duas) abstenções.

A suspensão em comento é especialmente delicada porque ela se efetivou no dia 29/4/2021, quando o leilão estava marcado para o dia seguinte, 30/4/2021, na Bolsa de Valores de São Paulo. O sobressalto da sociedade foi, por conseguinte, intenso.

Juridicamente, a atuação da ALERJ é questionável, por pelo menos 2 (dois) motivos que se compreende serem fundamentais para a manutenção do Estado Democrático de Direito Brasileiro.

Em primeiro lugar porque os decretos legislativos, previstos no art. 59, VI, da Constituição da República, têm como função a veiculação das matérias exclusivas do Poder Legislativo, sendo que nenhuma delas se amolda à suspensão de um leilão de uma empresa estatal.

A competência legislativa que mais se aproxima ao contexto discutido seria a possibilidade de o Poder Legislativo sustar atos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa, hipótese prevista no art. 49, V, da Constituição Federal e no art. 99, VII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Não é o caso, no entanto: a opção de submeter a CEDAE a leilão, a bem da verdade, se insere no campo das políticas públicas e das prioridades administrativas, competências exclusivas do Poder Executivo, cuja interferência da Assembleia Legislativa pode implicar, inclusive, violação à separação dos poderes.

Em segundo lugar, para além do conflito de competência entre os Poderes Legislativo e Executivo, a questão perpassa pela desobediência da não interferência do Estado-Membro em seus Municípios, regra essencial do pacto federativo. Há, na espécie, uma invasão à autonomia dos entes municipais alheia às excepcionais hipóteses de intervenção estadual.

Isso porque a promoção do leilão tem origem não em uma política estadual, mas em uma concretização de uma deliberação efetuada por entes municipais titulares do serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário, no âmbito de região metropolitana, cuja natureza é interfederativa.

Nesse sentido, aliás, o entendimento do Supremo Tribunal Federal[1], ao afirmar, confirmando o que já havia sido sedimentado na ADI 1.842/RJ, que “a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico segue sendo dos municípios integrantes, a despeito da execução de referidos serviços se dar de modo conjunto no âmbito da unidade interfederativa.” No mesmo sentido, Ricardo Marcondes Martins assevera que “nas regiões metropolitanas, para boa parte da doutrina, o serviço de saneamento básico é de titularidade dos Estados. Trata-se, porém, de um infeliz equívoco (...) Fixe-se: os Municípios são os titulares do serviço de saneamento nas regiões metropolitanas.”[2]

A titularidade do serviço em análise pertence, pois, aos Municípios integrantes da região metropolitana. O Estado do Rio de Janeiro atuou, assim, não como titular, mas como mero gestor da concessão, representando os interesses dos verdadeiros titulares e a pedido destes, auxiliando-lhes e condicionando-lhes quando da administração e execução dos interesses comuns. Nesse sentido, comunga-se do entendimento de Paulo Modesto, quando afirma que a “competência do Estado para instituição da região metropolitana não autoriza que o Estado assuma para si a execução dos serviços de saneamento nem a titularidade do serviço.”[3]

A questão, logo, se refere à atuação dos Municípios, pelo que a Assembleia Legislativa (órgão legislativo estadual) não poderia interferir, ainda que detivesse atribuição e competência materiais para tanto, hipótese na qual o acertado seria a interferência das respectivas Câmaras Municipais (órgãos legislativos municipais), que representam o povo a nível municipal.

Veja-se, pelo exposto, que a atuação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro é, para dizer o mínimo, questionável, por abalar a um só tempo tanto a autonomia municipal como a competência exclusiva do Poder Executivo para tratar da conveniência e da oportunidade da atividade administrativa – o mérito administrativo.

Isso considerando tão somente aspectos jurídicos. Sob outros prismas, importa enfatizar também que a ALERJ, com a sua atuação, pretende condicionar o leilão ao elastecimento do Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro (RRF), em mais uma manobra política que trata o interesse da sociedade como moeda de troca. O interesse público, enfim, é mais uma vez tratado como objeto de escambo no âmbito do cenário político, algo que, infelizmente, não é novidade para nós brasileiros, o que não quer dizer que seja algo correto e legítimo.

De todo modo, a controvérsia ainda não chegou ao seu desfecho: o governador em exercício, Cláudio Castro, resolveu prosseguir com o leilão em tela, a despeito da suspensão ordenada pela ALERJ, o que transparece a crise institucional vivida pelo Estado do Rio de Janeiro que em nada contribui para os objetivos constitucionais. Resta-nos aguardar as cenas dos próximos capítulos envolvendo a privatização ou não da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro.

[1] Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 1.446/RJ, decisão do Ministro Presidente Luiz Fux, datada de 22/04/2021. [2] MARTINS, Ricardo Marcondes. Titularidade do serviço de saneamento básico à luz da Lei Federal 14.026/2020. In: DAL POZZO, Augusto Neves (coord.). O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. 1. ed. São Paulo: Thousom Reuters Brasil, 2020. [3] MODESTO, Paulo. Região Metropolitana, Estado e Autonomia Municipal: a governança interfederativa em questão. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 66, 2016. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/regiao-metropolitana-estado-e-autonomia-municipal-a-governanca-interfederativa-em-questao> Acesso em: 29/04/2021.


Texto do advogado Caio Mário Lanna Cavalcanti

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