- Carvalho Pereira Fortini
A ratificação do princípio da motivação em meio à pandemia
A falta da motivação da Dispensa Licitatória nº 34/2020, que originou o Contrato nº 16/2020, no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas é tema de comentário redigido por Caio Lana, advogado do Carvalho Pereira, Fortini. Para o especialista, é preciso a devida justificativa para a celebração de uma dispensa licitatória.
Por intermédio do entendimento exteriorizado quando do Acórdão nº 2.228/2020, cuja relatoria ficou a cargo do Ministro Vital do Rêgo, o Tribunal de Contas da União corroborou o óbvio: ainda que em tempos pandêmicos, o princípio da motivação é de observância obrigatória no bojo da atuação administrativa, mormente no tocante às licitações públicas. De todo modo, em tempos como os ora vivenciados, de insegurança jurídica e de extrema instabilidade, é de grande valia que o óbvio, por mais cristalina que seja a obviedade, seja sempre repisado pelo Poder Judiciário e pelas Cortes de Contas.
Trata-se o caso concreto avaliado pelo Acórdão nº 9.228/2020 de representação, apresentada nos termos do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, em que se questiona a falta da motivação da Dispensa Licitatória nº 34/2020, que originou o Contrato nº 16/2020, no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas.
Nos termos da representação, a dispensa licitatória realizada fora levada a efeito sem quaisquer motivações plausíveis aptas a afastar a regra geral da licitação no que tocava às ambulâncias pretendidas, sob a genérica justificativa do combate ao coronavírus, situação ilegal que de plano foi rechaçada pelo Tribunal de Contas da União. Na literalidade do acórdão em comento, “os processos de contratação relacionados ao enfrentamento da crise do novo coronavírus devem ser instruídos ‘com a devida motivação dos atos por meio da inclusão nos autos, no mínimo, de justificativas específicas da necessidade da contratação, da quantidade dos bens ou serviços a serem contratados com as respectivas memórias de cálculo e com a destinação do objeto contratado’”.
É cediço que a pandemia exigiu do legislador e do administrador público condutas inusitadas, não usuais, não ortodoxas, a fim de que as consequências práticas maléficas do Covid-19 fossem sempre mitigadas e minimalizadas, exigência essa que atualmente encontra literal amparo na Lei nº 13.655/2018. Nesse sentido, no âmbito das contratações públicas – sobretudo considerando que a sua rápida efetivação pode ser pressuposto para o salvamento de vidas – a Lei nº 13.979/2019, por exemplo, prevê uma série de medidas que excepcionam, durante o cenário pandêmico, algumas das regras estanques previstas na Lei nº 8.666/93.
Todavia, ainda que algumas relativizações sejam necessárias para o enfrentamento da ainda presente emergência de saúde pública, os princípios que regem a Administração Pública, naturalmente, ainda estão em vigor e não podem ser simplesmente desconsiderados. Dentre eles, destaca-se justamente o princípio da motivação quando da dispensa licitatória, de modo que o administrador público tem o dever de justificar devidamente por qual razão, e com amparo em qual dispositivo legal, se está a excepcionalizar a regra das licitações públicas, regra essa, aliás, apta a concretizar vários outros princípios atinentes ao Poder Público, a exemplo da impessoalidade, da eficiência, da moralidade, dentre tantos outros.
Em tal contexto, a pandemia não pode ser vulgarizada a ponto de ser utilizada como remédito para todos os males e como respaldo para a prática de arbitrariedades, como se, em tempos pandêmicos, os recursos públicos estivessem à disposição do bel-prazer do administrador público. As relativizações aos institutos jurídicos, quando permitidas ao Poder Público, devem sempre estar previstas em lei, em atenção ao tão caro princípio da legalidade. Isso, no entanto, não restou observado pela Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas no caso em tela.
Nessa senda, claro, se as dispensas licitatórias são mecanismos importantíssimos para o combate aos efeitos da pandemia – haja vista que a morosidade do procedimento licitatório não se harmoniza com a celeridade que muitas vezes a Covid-19 exige no bojo das contratações públicas –, não podem elas ser levadas a efeito sem que o administrador público justifique e motive a contratação direta, à luz do princípio da motivação que, se sepultado, ocasionará o balanço das estruturas do Estado Democrático de Direito.
É por tudo isso que, sob a nossa visão, andou bem o Tribunal de Contas da União ao frisar que, ao não apresentar a devida justificativa para a celebração de uma dispensa licitatória, esta resta eivada de ilegalidade, o que é natural à luz do princípio de motivação. Trata-se de entendimento que, embora óbvio, é de grande valia, a fim de que sejam freados os administradores públicos que, sob a justificativa da pandemia, insistem em atuar sem amparo legal e sem respeito aos princípios atinentes à Administração Pública.
