- Carvalho Pereira Fortini
AUSÊNCIA DE IMPUTAÇÃO DE DOLO ESPECÍFICO EM RELAÇÃO AO CRIME DO ART. 90, DA LEI Nº 8.666/93
Na manhã do dia 07/11, quando do julgamento do Inquérito nº 4.103/SC, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu por bem rejeitar inteiramente uma denúncia oferecida contra o deputado federal João Paulo Kleinübing (PSD-SC).
A discussão dizia respeito a fatos praticados pelo parlamentar em 2012, quando à época era prefeito de Blumenau (SC), relacionados à contratação de empresas para a execução de obras de pavimentação, saneamento básico e captação pluvial. Consoante o entendimento do órgão ministerial, o investigado teria incorrido, dentre outros, no crime previsto no art. 90, da Lei nº 8.666/93, cujo tipo prescreve: “frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.”
O inquérito em comento teve seu julgamento iniciado em novembro de 2016, oportunidade em que o hoje falecido ministro Teori Zavascki votou pelo recebimento parcial da denúncia, tão somente no que tocava ao crime previsto no art. 90, da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Para melhor avaliação, o ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos e, ao entender pela inépcia da denúncia, foi esta rejeitada integralmente nos termos do seu voto-vista, por maioria. Ficou vencido apenas o voto de Zavascki, ausentes justificadamente os ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
Em sua argumentação, segundo Toffoli, o enquadramento da conduta como crime previsto no art. 90, da Lei nº 8.666/93, exige, indispensavelmente, o intuito de obter vantagem, para si ou para outrem, decorrente da adjudicação do objeto do procedimento administrativo licitatório. Com efeito, haja vista que o Parquet não imputou este dolo específico, tampouco apresentou a vantagem obtida, não há que se falar em recebimento legal da denúncia.
Ademais, realçou em seu voto o ministro paulista que não há afirmação de que o crime não existiu, mas trata-se de um vício formal da denúncia que impede o seu recebimento, em âmbito do juízo de admissibilidade. Assim, o delito pode até ter sido praticado, mas a denúncia a ele atrelada não apresentou os requisitos mínimos a permitir o seu prosseguimento, in casu, a imputação referente ao dolo específico. Vale dizer, não houve a análise meritória da controvérsia exposta pelo Ministério Público, mas imperfeição de cunho formal que impossibilitou o progresso processual da pretensão. É o que aduziu em seu voto, ao afirmar primeiramente que “não se trata aqui de avaliar se está ou não presente o dolo específico”, e, subsequentemente, que “trata-se, isso sim, de um defeito formal da denúncia.”
Outrossim, salienta Toffoli, com base em entendimento exposto em oportunidade diversa pelo ministro Gilmar Mendes1, que a fase do juízo de admissibilidade da denúncia é crucial pois envolve também a proteção aos direitos individuais, na medida em que o recebimento equivocado pode culminar com a violação da esfera jurídica do denunciado e com a sua submissão injustificada ao processo penal, com todas as suas consequentes mazelas. Por isso, é essencial verificar se a denúncia apresenta um conjunto mínimo de provas para que delas se extraia a autoria do delito e, além disso, se preenche os requisitos indispensáveis do art. 41 do Código de Processo Penal2. Logo, denúncias genéricas e formuladas com frágeis fundamentos não são aptas a serem recebidas, a teor do que fundamentou o ministro em seu voto-vista.
Ao analisar o caso concreto e as informações dos autos, Dias Toffoli conclui que a denúncia até expõe em que consistiria, em tese, a fraude. Contudo, não imputa ao denunciado, consoante determina o art. 90, da Lei nº 8.666/93, o “intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”, isto é, o dolo específico essencial previsto na legislação. Vale dizer, para a configuração do delito, dois elementos precisam ser observados: a vontade deliberada de frustrar ou fraudar o caráter competitivo da licitação (dolo genérico) e, cumulativamente, o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto (dolo específico).
Logo, ausente na denúncia a individualização deste segundo elemento, que revela a finalidade especial do agente, atravancado restou o seu recebimento. É o que expôs Toffoli: “à míngua de uma imputação que necessariamente deveria compreender a descrição do dolo específico do agente, a meu sentir, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia em relação ao crime descrito no art. 90 da Lei nº 8.666/93.”
Ante o deslindado, restaram nítidos o rigor e a preocupação do Supremo Tribunal Federal com o caráter técnico da interpretação e aplicação do art. 90 da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Isso pois a Suprema Corte deixou claro que, no atinente ao delito em análise, o elemento subjetivo do tipo penal abrange duas perspectivas cumulativas: além do dolo genérico, que consiste na vontade consciente de fraudar o procedimento licitatório, é imprescindível o dolo específico, isto é, o especial fim de agir com vistas a obter vantagem decorrente da adjudicação do objeto licitatório.
À guisa de conclusão, portanto, ausente na denúncia a imputação mínima de um dos elementos indispensáveis para a caracterização do crime alegado, firmou a Corte Máxima do país que não há que se falar em um recebimento legítimo que não atinja, ilegalmente, a esfera jurídica do denunciado e que não desvirtue as normas pertinentes do ordenamento jurídico brasileiro.
1 No voto condutor do Inquérito nº 3.218/RR, Pleno, DJe de 1º/10/13.
2 Dispõe o art. 41 do Código de Processo Penal: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”