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  • Carvalho Pereira Fortini

Nova Lei de Improbidade Administrativa: O que mudou?




Por Cristiana Fortini e Caio Cavalcanti


1 - INTRODUÇÃO


Foi publicada dia 26/10/21, no Diário Oficial da União (DOU), a sanção presidencial do Projeto de Lei nº 10.887/18 (numeração dada na Câmara dos Deputados), posteriormente renumerado para Projeto de Lei nº 2.505/21 (numeração dada no Senado). Trata-se da Lei nº 14.230/21, que, por alterar substancialmente a Lei nº 8.429/92, vem sendo denominada por alguns juristas de Nova Lei de Improbidade Administrativa.


A nova lei divide opiniões, o que é natural, porque toca justamente em pontos que há anos são os principais objetos das polêmicas envolvendo o tema da improbidade administrativa.


Se de um lado alguns julgam devido o que pode ser a mitigação de penalizações descontroladas e desproporcionais, o que vem ocorrendo muito; de outro lado, há quem acredite que a Lei nº 14.230/21 é um afrouxamento do controle da probidade administrativa e um convite à impunidade, ideias com as quais não concordamos, sobretudo considerando que existem vários outros instrumentos jurídicos de controle da Administração Pública[3].


Só o tempo dirá, contudo, quais serão os efeitos práticos da Lei nº 14.230/21.


2 – AFINAL, O QUE É IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA?


Muito se fala, inclusive nos noticiários e nos jornais, sobre improbidade administrativa. O termo passou, portanto, a integrar a rotina dos brasileiros, principalmente nos últimos anos.


Todavia, em que pese o assunto esteja sempre em evidência, poucos sabem tecnicamente o ele significa: o que é, afinal, improbidade administrativa, em sua essência?


Em primeiro lugar, importante esclarecer que improbidade administrativa não é crime, senão uma infração de natureza civil e, para alguns estudiosos, também político-administrativa.


É certo que um ato ímprobo pode também configurar um crime[4] situação em que os acusados poderão responder a distintos processos judiciais.


As sanções aplicadas aos condenados em ação de improbidade, embora não afetem a liberdade, são severíssimas, a exemplo da suspensão dos direitos políticos, da proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, a multa civil e o ressarcimento ao erário.


Quanto à conceituação, tecnicamente, improbidade administrativa é uma ilegalidade qualificada pelo elemento subjetivo da desonestidade e da má-fé. Isso quer dizer que o ato ímprobo é aquele ato ilegal que tem na desonestidade e na corrupção as suas principais notas características.


Nesse sentido, é de se perceber que toda improbidade administrativa é, necessariamente, uma ilegalidade; mas, por outro lado, nem toda ilegalidade é um ato ímprobo. Afinal, é possível que se pratique uma ilegalidade por um simples descuido, por uma singela inexperiência ou por um ato de inabilidade, fatos que não são suficientes para imputar a alguém a prática de improbidade administrativa.


Feita essa breve conceituação do instituto, passa-se a descrever, sem a pretensão de esgotar o tema, as principais mudanças concretizadas pela Lei nº 14.230/21.


3 – O FIM DO ATO DE IMPROBIDADE CULPOSO

Certamente uma das principais mudanças é o fim do ato ímprobo culposo[5], de forma que serão penalizados nos moldes da Lei nº 8.429/92 apenas os atos dolosos, que são aqueles praticados com intenção, com vontade, com o intuito deliberado. O ato culposo, por sua vez, é aquele praticado sem a intenção de causar um determinado resultado, mas que acaba ocorrendo por imperícia, por imprudência ou por negligência.


A novidade não agradou os agentes de controle, a exemplo dos membros do Ministério Público. Já prevalecia, entretanto, entre os Professores de Direito Administrativo o entendimento no sentido de que a improbidade administrativa não se harmoniza com os atos culposos, na medida em que não há como ser desonesto ou corrupto – notas características do ato de improbidade – mediante imprudência, negligência ou imperícia.


4 – A DELIMITAÇÃO DO ATO ÍMPROBO VIOLADOR DE PRINCÍPIOS


Outra mudança relevante diz respeito aos atos de improbidade por violação a princípios. Nesse contexto, a improbidade pode se configurar não só nos casos de dano ao erário e enriquecimento ilícito, mas também porque foram desrespeitados princípios, que são espécie de normas jurídicas.


Essa modalidade de improbidade sempre gerou incertezas porque princípios são normas de conteúdo mais abstrato, é dizer, indeterminado, aberto, incerto, subjetivo, pouco delimitado. O risco de dada conduta ser considerada ofensiva ao princípio da eficiência, por exemplo, poderia gerar (e de fato gerava) receio de agentes públicos em realizá-la.


Durante a pandemia, essa realidade foi revelada: muitas vezes era (e ainda é) necessário adquirir bens e serviços relacionados à saúde de maneira extremamente rápida, de modo que aguardar o procedimento licitatório ou o fim de um concurso público gerava e ainda gera prejuízos para os interesses da coletividade. Lado outro, os gestores, embora cientes dessa necessidade, ficavam e ainda ficam receosos em atuar[6], porque afastar uma licitação pública ou um concurso público é conduta que facilmente pode ser enquadrada, ao sabor do acusador, a um ato violador de princípios, por exemplo, os princípios da eficiência e da impessoalidade.


No que toca a essa modalidade de improbidade, a mudança consiste na maior tipificação e delimitação das situações que podem ensejar a condenação. A Lei nº 14.230/21 traz a definição das condutas que implicam violações a princípios para seus fins[7], o que contribui para a segurança jurídica, porque demarca os comportamentos que são vistos como incorretos.


Assim, as condutas que podem caracterizar ato ímprobo violador de princípios são aquelas descritas no art. 11 da Lei nº 8.429/92. O rol, portanto, não é mais exemplificativo, mas exaustivo.


5 – A NECESSIDADE DE EFETIVA E COMPROVADA PERDA PATRIMONIAL, DESVIO, APROPRIAÇÃO, OU DILAPIDAÇÃO PARA OS FINS DE ENQUADRAMENTO DA CONDUTA NO ART. 10 DA LEI Nº 8.429/92


A regra geral para os fins de enquadramento da conduta ao ato ímprobo causador de dano ao erário – art. 10 da Lei nº 8.429/92 –, antes mesmo da Lei nº 14.230/21, é a efetiva lesão patrimonial. Trata-se de um pressuposto inclusive lógico, na medida em que não há que se falar em dano ao erário se não existiu de fato uma perda ou deterioração dos cofres públicos.


Ocorre que, ainda que seja tal a regra, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vinha admitindo exceção, no sentido de enquadrar a conduta ao art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa mesmo que não haja comprovação da efetiva lesão. Era o caso da conduta descrita no art. 10, VIII, da Lei de Improbidade Administrativa, em sua redação antiga, que considerava ato ímprobo “frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente.”


O dano, para tal hipótese específica, segundo o Superior Tribunal de Justiça, era presumido – ou, conforme nomenclatura jurídica, in re ipsa[8] –sendo desnecessária até então a demonstração de real e efetivo prejuízo para os cofres públicos.


Com o advento da Lei nº 14.230/21, essa exceção não mais existe, sendo imprescindível, para a configuração do ato de improbidade do art. 10 da Lei nº 8.429/92, o efetivo dano.


Isso na medida em que o atual caput do art. 10 determina que a configuração do ato ímprobo exige “efetiva e comprovadamente” perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação. Inclusive, foi mantida a redação do mencionado inciso VIII, embora ao final tenham sido incluídas as palavras “acarretando perda patrimonial efetiva”, o que revela a imprescindível necessidade de lesão ao erário efetiva para os fins do amoldamento da conduta no art. 10 da Lei nº 8.429/92.


6 – AS MUDANÇAS NAS PENALIDADES


Antes da Lei nº 14.230/21, no caso de ato ímprobo por enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei nº 8.429/92), as penas possíveis eram: a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, o ressarcimento integral do dano ao erário, quando houver, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos de 8 (oito) a 10 (dez) anos, o pagamento de multa civil de até 3 (três) vezes o valor do acréscimo patrimonial e a proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 (dez) anos.


Quanto aos casos de improbidade administrativa causadora de lesão ao erário (art. 10 da Lei nº 8.429/92), dispunha a redação anterior da Lei de Improbidade Administrativa que as penas cabíveis eram: o ressarcimento integral do dano aos cofres públicos, a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos de 5 (cinco) a 8 (oito) anos, o pagamento de multa civil de até 2 (duas) vezes o valor do dano e a proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 5 (cinco) anos.


No que diz respeito à improbidade administrativa consubstanciada na violação aos princípios inerentes à Administração Pública (art. 11 da Lei nº 8.429/92), versava a Lei nº 8.429/92 que as possíveis penalidade eram: o ressarcimento integral do dano ao erário, se houver, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos de 3 (três) a 5 (cinco) anos, o pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e a proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 3 (três) anos.

Com a publicação da 14.230/21, as penalidades de suspensão de direitos políticos e de proibição de contratar com o Poder Público e de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, foram majoradas em seu máximo[9], no entanto, foram extirpados os patamares mínimos.


No tocante à multa civil, foi ela minorada.


No tocante ao ato ímprobo ensejador de enriquecimento ilícito, a suspensão dos direitos políticos poderão ser fixadas em até 14 (quatorze) anos, sem qualquer fixação de penalidade mínima.

A proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios igualmente poderá ser fixada em prazo não superior 14 (quatorze) anos, sem previsão de patamar mínimo.


No tocante à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, à perda da função pública e ao ressarcimento integral do dano ao erário, serão mantidos; já a multa civil foi fixada no valor do acréscimo patrimonial.


No que se refere ao ato de improbidade causador de lesão ao erário, a suspensão dos direitos políticos poderá ser fixada pelo prazo de até 12 (doze) anos, sem qualquer patamar mínimo; e a proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios igualmente poderá ser fixada em prazo não superior também a 12 (doze) anos, igualmente sem previsão mínima.

Ja no tocante à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, à perda da função pública e ao ressarcimento integral do dano ao erário, serão mantidos; e a multa civil, por sua vez, foi fixada no valor do dano.


Por fim, quanto ao ato ímprobo violador dos princípios administrativos, foi diminuída a multa civil para 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente, e a proibição de contratar com a Administração Pública ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios foi majorada para prazo não superior a 4 (quatro) anos. Não há mais suspensão dos direitos políticos, o que merece destaque.


Em virtude da quantidade enorme de informação, eis a síntese das atuais penalidades no quadro abaixo:

7 – DA EXTINÇÃO DA POSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DE BENS SEM A DEMONSTRAÇÃO DO PERIGO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE RISCO AO RESULTADO ÚTIL DO PROCESSO


Ponto que sempre foi objeto de intensa crítica por vários juristas[10] é o entendimento então dominante do Superior Tribunal de Justiça que permitia a indisponibilidade de bens, em sede liminar (sem manifestação prévia do particular[11]), sem que houvesse qualquer demonstração de que os réus estariam dilapidando o seu patrimônio, com a finalidade de frustrar uma eventual execução futura. Para a Corte Superior de Justiça, o perigo da demora já estaria implícito, em favor da sociedade e do interesse público[12].


A crítica dos juristas é válida, na medida em que a regra a ser seguida é o esgotamento do contraditório e da ampla defesa antes de qualquer restrição patrimonial, pelo que frágil a alegação de dano presumido.


Soma-se a isso o fato de que o particular se presume inocente e dotado de boa-fé, logo, a indisponibilidade de bens logo no início do processo deveria exigir, para além da forte fundamentação dos argumentos narrados pelo autor da ação, os chamados perigo de dano irreparável ou de risco à utilidade do processo.


Com a Lei nº 14.230/21, isso não mais é possível, na medida em que o atual art. 16, §3º da Lei nº 8.429/92 determina que “o pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias.


Ou seja, partir da nova lei, a indisponibilidade de bens somente é possível com a demonstração efetiva do perigo da demora, não mais persistindo a lógica do perigo presumido.


8 – DA LIMITAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE AO MONTANTE INDICADO NA PETIÇÃO INICIAL COMO DANO AOS COFRES PÚBLICOS E DA CONSEQUENTE EXTINÇÃO DO BLOQUEIO A TÍTULO DE GARANTIA DO PAGAMENTO DA MULTA CIVIL


Antes da Lei nº 14.230/21, o Superior Tribunal de Justiça compreendia que, para além do montante relativo aos danos aos cofres públicos, a medida de indisponibilidade de bens também pode incidir sobre os valores necessários para garantir uma eventual multa civil.


A nova lei muda essa concepção: a indisponibilidade de bens incidirá tão somente sobre valores suficientes para garantir o ressarcimento aos cofres públicos, vedados bloqueios relativos ao acréscimo pecuniário ilícito (claro, quando não implicar dano ao erário) e à multa civil.


Assim, conforme o atual art. 16, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa, “a indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita.


9 – DA NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA PARA FINS DE INDISPONIBILIDADE DE BENS DE PESSOA JURÍDICA


As pessoas jurídicas possuem patrimônio próprio, diverso do patrimônio de seus representantes legais. Por isso que quando há a indisponibilidade de bens daquelas, os bens destes últimos não sofrem qualquer restrição. Há, pois, essa separação de bens entre a pessoa jurídica e os seus representantes.


Todavia, para os casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial[13], é possível que essa separação entre os bens da pessoa jurídica e o patrimônio dos seus representantes seja desconsiderada. É o que se chama de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, de acordo com o art. 50 do Código Civil[14].


Antes das mudanças legais em análise, quando uma pessoa jurídica integrava um processo de improbidade administrativa, eram seus bens que inicialmente poderiam sofrer indisponibilidade, ainda que, como afirmado, a pessoa jurídica seja uma mera ficção legal, de modo que suas condutas são perpetradas por particulares, quem sejam, seus representantes.


Ocorre que, como já dito, com a Lei nº 14.230/21 os atos de improbidade somente poderão se dar mediante dolo. Assim sendo, nos casos em que concebível a prática de ato ímprobo, o que estará em debate é justamente esse desvio de finalidade ou essa confusão patrimonial do representante legal da pessoa jurídica, pressupostos legais para a desconsideração da personalidade jurídica, conforme art. 50 do Código Civil.


Nesse contexto, para o legislador, não faria sentido restringir os bens da pessoa jurídica de forma isolada, quando, por ser uma ficção, seus atos apenas se concretizam mediante ação ou omissão de pessoas físicas.


É nesse raciocínio, então, que a nova lei impõe que a indisponibilidade de bens da pessoa jurídica somente poderá ocorrer se houver ao menos instauração (e não necessariamente finalização) de incidente de desconsideração de personalidade jurídica, a fim de que aquele que tenha agido com dolo tenha os seus bens atingidos, o que privilegia a manutenção das atividades empresárias, cuja função social é protegida constitucionalmente.


10 – DA PRIORIDADE PARA FINS DE INDISPONIBILIDADE DE BENS


A redação antiga da Lei de Improbidade Administrativa não mencionava qualquer ordem de prioridade de bens para os fins da medida de indisponibilidade. Na prática, isso implicava, muitas vezes, bloqueio de contas correntes de pessoas físicas e jurídicas, impedindo-lhes o exercício de suas atividades profissionais e a concretização de necessidades básicas, mesmo existindo bens outros que poderiam garantir uma futura execução.


Essa realidade já vinha sendo alvo de críticas pelos especialistas, haja vista a falta de razoabilidade. Afinal, à luz do princípio da menor onerosidade, não faz sentido e não é razoável bloquear as contas correntes, essenciais para os réus, quando outros bens podem garantir o débito da mesma maneira, porém de forma muito menos onerosa.


É o caso dos bens imóveis, das joias, dos itens de coleção valiosos e dos automóveis, por exemplo.

Atento a isso, o legislador estipulou que a indisponibilidade de bens deverá recair sobre as contas correntes apenas em último caso, quando inexistirem bens outros, cuja restrição é menos prejudicial, aptos a garantir o débito.


É essa a acertada redação atual art. 16, §11, da Lei nº 8.429/92: “a ordem de indisponibilidade de bens deverá priorizar veículos de via terrestre, bens imóveis, bens móveis em geral, semoventes, navios e aeronaves, ações e quotas de sociedades simples e empresárias, pedras e metais preciosos e, apenas na inexistência desses, o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo.


Trata-se de entendimento que coaduna com o princípio da menor onerosidade, que impõe que o devedor deve sim garantir o débito, no entanto, sempre da forma menos onerosa possível.


11 – A NECESSIDADE DE OBSERVAR AS CONSEQUÊNCIAS DA DECISÃO


A Lei nº 13.655/18, que acresceu uma série de dispositivos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, estabeleceu uma nova lógica de interpretação e aplicação do Direito Público.


Dentre as novas diretrizes, há a necessidade de observar e considerar as consequências práticas da decisão. Ou seja, não mais resta legítimo encarar, aplicar e interpretar as normas de forma abstrata e dissociada da realidade, devendo o juiz – e também os administradores públicos – levar em consideração os efeitos reais que suas decisões causarão na sociedade, bem como as dificuldades e obstáculos da realidade.


A Lei nº 14.230/21 segue tais diretrizes, e nem poderia ser diferente, na medida em que a Lei nº 13.655/18 se aplica às normas de Direito Público em geral, dentre as quais se incluem aquelas relativas à improbidade administrativa.


Assim, em atenção a esse contexto, o atual art. 16, §12 da Lei nº 8.429/92 dispõe que “o juiz, ao apreciar o pedido de indisponibilidade de bens do réu a que se refere o caput deste artigo, observará os efeitos práticos da decisão, vedada a adoção de medida capaz de acarretar prejuízo à prestação de serviços públicos.”


Fez bem o legislador, porque, na realidade, não raras as vezes a medida de indisponibilidade acaba causando severas consequências não só para o réu, mas para o próprio interesse público.


É o caso, por exemplo, da indisponibilidade das contas correntes de uma concessionária de serviço público de transporte coletivo, que passa a não conseguir mais arcar com suas obrigações trabalhistas e tributárias, causando em efeito cascata consequências que culminam com o colapso do serviço público. Isso prejudica não só a concessionária, mas a população.


Também nesse sentido, o atual art. 17-C da Lei de Improbidade determina que a sentença deve, além de ser motivada – o que não é novidade –, “considerar as consequências práticas da decisão, sempre que decidir com base em valores jurídicos abstratos” (inciso II) e “considerar os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados e das circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente” (inciso III)[15].


Nesta toada, com a nova lei, as consequências práticas da decisão (dentre elas, os efeitos sobre os serviços públicos) terão de ser consideradas, algo que, em verdade, já era exigido – embora ignorado na prática em diversas oportunidades – desde a Lei nº 13.655/18.


12 – A IMPOSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE SOBRE QUANTIA DE ATÉ 40 (QUARENTA) SALÁRIOS MÍNIMOS E SOBRE O BEM DE FAMÍLIA


Nos termos do art. 833, X, do Código de Processo Civil, é impenhorável a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos.


A ideia subjacente à norma reside em proteger a dignidade da pessoa humana, na medida em que tal quantia seria aquela necessária para manter a subsistência e o padrão de vida mínimo do indivíduo e de sua família, a pequeno e médio prazo.


Seguindo essa mesma lógica, o atual art. 16, §13, diz o seguinte: “é vedada a decretação de indisponibilidade da quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos depositados em caderneta de poupança, em outras aplicações financeiras ou em conta-corrente.”


Entende-se devida a mudança pretendida, e isso não apenas considerando o resguardo da subsistência e do padrão de vida da pessoa. Mas também por uma questão de lógica e coerência: se, nos termos do Código de Processo Civil, são impenhoráveis os valores até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a indisponibilidade deles resta prejudicada e inútil, porquanto não poderão ser utilizados, no futuro, para honrar o débito.


Em outras palavras: não faz sentido bloquear um valor que é impenhorável, que não poderá ser usado efetivamente para ressarcir o erário.


Além disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admitia, não sem opiniões contrárias, no âmbito das ações de improbidade administrativa, que a indisponibilidade de bens recaísse sobre o bem de família[16].


Essa possibilidade sempre foi questionada, sobretudo porque, à semelhança da limitação envolvendo os 40 (quarenta) salários mínimos, o bem de família é impenhorável por força da Lei nº Lei nº 8.009/90, que impõe a proteção ao imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar, isentando-o de eventuais penhoras relativas a dívidas civis, comerciais, fiscais, previdenciárias ou outras de qualquer natureza. Ou seja, restaria inócua a indisponibilidade sobre o bem de família, simplesmente porque ele não pode ser usado futuramente para uma eventual execução, para fins de ressarcir o erário.[17]


A referida crítica foi acolhida pela nova lei, exceto se o bem de família for adquirido mediante ato de improbidade que causou enriquecimento ilícito. É o que dispõe o art. 16, §14, da Lei nº 8.429/92: “é vedada a decretação de indisponibilidade do bem de família do réu, salvo se comprovado que o imóvel seja fruto de vantagem patrimonial indevida, conforme descrito no art. 9º desta Lei.”


AFINAL, AS MUDANÇAS RETROAGEM?


Pelo exposto, é nítido que, sob a ótica dos réus das ações de improbidade administrativa, as mudanças advindas da Lei nº 14.230/21 são, em sua maioria, favoráveis. Diante disso, pergunta-se: essas mudanças podem retroagir, para atingir as ações em curso?


Entende-se que sim.


Em primeiro lugar porque o art. 1º, §4º, da Lei nº 8.429/92, acrescido pela Lei nº 14.230/21, adverte que “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”, sendo certo que um dos principais pilares do direito sancionatório é a retroatividade benigna. Isto é, a possibilidade jurídica de retroagir a lei caso a aplicação da lei nova seja benéfica para o acusado[18].


É o que acontece recorrentemente, sem maiores questionamentos, no âmbito do Direito Penal, cujos princípios se aplicam ao direito administrativo sancionador: nos termos do art. 2º do Código Penal, as leis novas benignas (as chamadas novatio legis in mellius) e as leis que deixam de considerar uma determinada conduta como criminosa (cenário conhecido por abolitio criminis) aplicam-se de forma retroativa, alcançando os atos anteriores à publicação da lei.


Em segundo lugar, porque a Lei nº 14.230/21, que adicionou o dispositivo acima descrito, não possui período de vacância (chamado de vacatio legis), mas entra em vigor desde a sua publicação. Isto é, desde que foi publicada, a referida lei já possui força jurídica para ser aplicada, o que inclui a aplicação das diretrizes do direito sancionador, que acolhe a retroatividade benigna.

Por conseguinte, entende-se possível a aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21, de modo a alcançar as ações ainda em curso relativas a fatos passados.


CONCLUSÃO


Resta-nos aguardar se a Lei nº 14.230/21 concretizará o seu intuito, que é frear a banalização da improbidade administrativa; ou se privilegiará a impunidade, preocupação principal dos membros dos órgãos de controle. Acreditamos na primeira opção.

 

[1] Advogada. Visiting Scholar pela George Washington University. Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do Mestrado da Faculdade Milton Campos. Professora Visitante da Universidade de Pisa. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Autora de livros e artigos jurídicos. [2] Advogado. Especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves), em Direito Tributário e em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Especialista em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Especialista em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae - IGC) e com a Faculdade Arnaldo. Especialista em Direito Administrativo, em Direito Público, em Direito Processual e em Direito Constitucional pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (FEAD-MG). Especialista em Direito Penal e Processual Penal e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Arnaldo. Especialista em Direito Público Aplicado pelo Centro Universitário UNA e pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI), conjuntamente com a Escola Superior de Advocacia da OAB/SP (ESAOAB/SP). Autor de livros e artigos jurídicos. [3] Por exemplo, para além das ações penais propriamente ditas: a ação popular, nos termos da Lei nº 4.717/65 e do art. 5º, LXXIII, da Constituição da República; a ação civil pública, nos termos da Lei nº 7.347/85 e do art. 129, III, da Constituição da República; o mandado de segurança, nos termos da Lei nº 12.016/09 e do art. 5º, LXIX e LXX, da Constituição da República; o direito de petição, nos termos do art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição da República; a possibilidade de denunciar irregularidades aos Tribunais de Contas, nos termos do art. 74, §2º, da Constituição da República, dentre outros mecanismos legais. [4] Por exemplo, o ato de improbidade descrito no art. 9º, I, da Lei nº 8.429/92, qual seja, “receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público”, pode configurar também o crime de corrupção passiva, previsto no art. 317 do Código Penal, cuja conduta tipificada é “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.” [5] Nesse sentido, o art. 1º, §1º da atual Lei nº 8.429/92: “consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.” (destaques nossos) [6] O fenômeno da paralisação das decisões dos agentes públicos, por medo de futuras ações e condenações, recebeu o nome de apagão das canetas. [7] O atual art. 11 da Lei nº 8.429/92 assim dispõe: “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (...)” (destaques nossos) [8] Nesse sentido: STJ, AgInt no REsp 1.542.025/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 12/06/2018; STJ, REsp 728.341/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/03/2017, DJe 20/03/2017; STJ, REsp 1.366.721/BA, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 19/09/2014. [9] Exceto no caso do art. 11, no que toca à penalidade de suspensão dos direitos políticos, conforme será visto no quadro abaixo. [10] Por exemplo: HARGER, Marcelo. Improbidade administrativa: comentários à lei nº 8.429/92. Coleção direito administrativo positivo, sob a coordenadoria de Irene Patrícia Nohara e Marco Antonio Praxedes de Moraes Filho. V. 7. São Paulo: Atlas, 2015, p. 190. [11] Nesse sentido, por exemplo: STJ, AgRg no AREsp 460.279/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 27/11/2014; STJ, REsp 1.197.444/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 05/09/2013; STJ, AgRg no AgRg no REsp 1.328.769/BA, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe de 20/08/2013. [12] Nesse sentido, por exemplo: STJ, AgRg no AREsp 341.211/PR, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 17/06/2015; STJ, AgRg no REsp 1.460.770/PA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 21/05/2015; STJ, AgRg no AREsp 369.857/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 06/05/2015; STJ, AgRg no AgRg no REsp 1.396.811/DF, Rel. Ministra MARGA TESSLER (JUÍZA FEDERAL CONVOCADA DO TRF 4ª REGIÃO), PRIMEIRA TURMA, DJe de 17/03/2015. [13] Ocorre quando os bens do representante legal da pessoa jurídica se confundem com os bens desta última. [14] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. [15] Também os seguintes pontos devem ser considerados pela sentença, segundo a lei: os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; a natureza, a gravidade e o impacto da infração cometida; a extensão do dano causado; o proveito patrimonial obtido e as circunstâncias agravantes e atenuantes. Esses pontos nada mais são senão reflexos da razoabilidade e da proporcionalidade. [16] STJ, AgInt no REsp 1.670.672/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 30/11/2017, DJe de 19/12/2017; STJ, REsp 611.518/MA, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, DJe de 05/09/2006; STJ, AgRg no REsp 956.039/PR, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 07/08/2008. [17] Em seu art. 3º, a Lei nº 8.009/90 confirma a impenhorabilidade do bem de família e a excepciona, caso o processo seja movido: pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato (inciso II); pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida (inciso III); para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar (inciso IV); para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar (inciso V); por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens (inciso VI) e por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação (inciso VII). O inciso I, referente a créditos trabalhistas da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias, foi revogado pela Lei Complementar n.º 150/15. Destaca-se ainda que a ação de improbidade possui natureza cível, razão pela qual inaplicável o inciso VI. [18] Nesse sentido a compreensão de Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega: “Antecipamos nossa resposta no sentido de que normas benignas, em geral, retroagem para beneficiar aquele que seja alvo de pretensão sancionadora em sede de improbidade administrativa, havendo, contudo, ressalvas a se considerar (...) Todos esses exemplos, somados, evidenciam que, conquanto não se possa estabelecer uma sobreposição total entre o Direito Penal e o Direito Administrativo sancionador de modo a que se possa deles extrair um regime comum, é fato que, ao menos no que toca ao princípio da retroatividade da lei benigna, há claro diálogo entre os dois campos.” Conferir: MUDROVITSCH, Rodrigo; NÓBREGA, Guilherme Pupo. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e Retroatividade. Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2021.

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